Marina A. R. M. Vieira e Andressa Zanin Rovani*
Muito se avançou desde que os indígenas começaram a ocupar as Câmaras Municipais brasileiras. O primeiro foi Manuel Primo dos Santos, ou “Seu Coco”, do povo Karipuna, que se tornou vereador na cidade do Oiapoque (AP) em 1969, pelo Arena, partido que deu sustentação à ditadura militar e ao qual pertenceram todos os prefeitos nomeados na cidade durante esse período. Sete anos depois, a milhares de quilômetros, o cacique Ângelo Kretã foi eleito vereador em Manguinhos (PR) pelo MDB. Foram 448 mandatos indígenas conquistados entre 1976 e 2012, segundo dados publicados em 2017 pelo pesquisador Luís Roberto de Paula.
Oficialmente, porém, foi só a partir de 2014, com a inclusão do campo “raça ou cor” no registro de candidatura do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que passou a ser possível contabilizar os candidatos e os eleitos autodeclarados indígenas. Até então, os dados eram dispersos e dependiam de levantamentos feitos por organizações indígenas e indigenistas.
Temos nas eleições municipais de 2016, portanto, o primeiro registro sistemático. E o que esses dados mostram é que, de 2016 para 2024, o número total de candidaturas indígenas cresceu 50,3% (Gráfico 1), chegando à marca oficial de 2.578 candidatos em 2024. Apesar de pequena, essa representação passa de 0,35% para 0,56% do total de candidaturas do país. A tendência de aumento, embora com menos vigor, também é observada em relação ao número de eleitos, crescimento que já vinha se pronunciando, ao menos desde 2004, de acordo com o levantamento de Luis Roberto de Paula. Foram 63 mandatos naquele ano, 80 em 2008, e 105 em 2012. Neste ano, 261 indígenas foram escolhidos para cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador no Brasil.
Fonte: Dados do TSE (coletados em 8/10/2024).
Outro ponto de interesse é que, de 2016 para cá, o número de mulheres indígenas que disputam uma eleição dobrou, enquanto os candidatos homens cresceram 30,2% – nesse intervalo, o número de registros totais no país caiu cerca de 7%. As candidaturas de mulheres, ao menos neste ano, foram impulsionadas pela ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), criada em 2021 com o propósito de fortalecer a luta pelos direitos das mulheres indígenas, incluindo a representação política.
No entanto, a taxa de sucesso eleitoral entre os homens indígenas neste ano foi maior, com cerca de 13,5% dos candidatos eleitos no primeiro turno, enquanto apenas 4,5% delas conseguiram se eleger. Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), atribui essa diferença de êxito nas eleições a um machismo estrutural, presente na política partidária e no eleitorado de maneira geral, que afeta todas as mulheres que pleiteiam espaço na política, incluindo as indígenas.
Fonte: Dados do TSE (coletados em 8/10/2024).
Em 2024, pela primeira vez, as candidaturas indígenas foram contempladas com distribuição proporcional de recursos financeiros oriundos do Fundo Partidário e do FEFC (Fundo Especial de Financiamento de Campanha), além de tempo gratuito de rádio e televisão. Outra novidade foi a inclusão de mais um campo de identificação indígena no registro de candidaturas: o de “etnia”. Como resultado, dentre os 2.578 candidatos registrados, observamos uma diversidade de 170 povos indígenas concorrendo nas eleições de 2024, apesar de um em cada cinco não declarar. Os cinco povos com maior número de candidatos foram Kaingang (169), Tikuna (150), Macuxi (107), Terena (91), Potiguara (90). Os Tikuna, Potiguara, Kaingang, Macuxi e Terena, nesta ordem, já figuravam entre os povos com mais mandatos até 2012, segundo levantamento de Paula. Esses povos também estão entre os mais populosos no Brasil, segundo o Censo de 2010.
A inclusão da referência direta à “etnia”, além de representar um importante reconhecimento à diversidade do país, com 305 povos indígenas, permite um melhor monitoramento sobre as autodeclarações sobre “raça ou cor” indígena, mas que não necessariamente são legitimadas por um povo. Nas eleições gerais de 2022, um dos quatro candidatos ao Senado autodeclarados indígenas foi o general Hamilton Mourão, então vice-presidente de um governo declaradamente anti-indígena, o que levantou a discussão sobre representantes e representados na luta indígena.
Para onde essa representação política aponta?
Considerando as agremiações que dão suporte às candidaturas indígenas a partir de 2016, PT, MDB e PP são os três partidos que concentram maior número de candidatos. Já em relação à identificação ideológica, neste ano, uma em cada três candidaturas indígenas foi lançada por partidos de esquerda (31%), em uma leve alta em relação à oito anos atrás. Mas a relevância desse campo ideológico se amplia quando observados apenas os candidatos à prefeitura, onde 47% das chapas foram lançadas por partidos do campo progressista – taxa que se mantém desde 2016. Já a composição partidária dos candidatos à vereança é mais diversa. Em 2024, os 2.461 nomes indígenas concorrentes às câmaras municipais estavam distribuídos por 27 partidos. Numericamente, PT foi o principal, representando 13,7% dos registros, seguido pelo MDB (9,6%), pelo PP (7,3%), União (7%), além de Republicanos e PSB empatados (6,9% cada um).
Kleber Karipuna pondera que a realidade diante da oferta partidária nas cidades menores muitas vezes leva os indígenas a se filiar a partidos de centro e até mesmo de direita, como já indicavam as candidaturas de seu avô, o Seu Coco, e de Ângelo Kretã. Por isto, a Apib tem adotado a estratégia de avaliar “caso a caso quem é candidato indígena, quem é a pessoa, e não necessariamente olhar o partido”, reconhecendo, desta forma, que, nas eleições municipais, a pauta defendida pelo candidato é mais importante que o vínculo partidário.
Como exemplo, na cidade mais indígena do país, São Gabriel da Cachoeira (AM), o prefeito recém-eleito, Egmar Curubinha, é filiado ao PT-AM, mas não era o candidato apoiado pelo movimento indígena. Curubinha é sobrinho de Clóvis Curubão, ex-prefeito também pelo PT, que defendia abertamente a liberação da mineração em Terras Indígenas. Enquanto na cidade mais indígena do Nordeste, Pesqueira (PE), o Cacique Marcos Xukuru acaba de ser eleito prefeito pelo Republicanos, partido que não representa diretamente a sua reconhecida luta pela defesa dos direitos indígenas, que contou com uma frente de apoio que reúne PT, partido de sua vice, PDT, PP, PCdoB, PRD, Agir, Avante e PSB.
É preciso destacar, porém, que a Rede foi o partido com maior expansão no número de candidaturas indígenas nos três últimos pleitos, passando de 17 registros, em 2016, para 201, em 2024. No caso da atuação da sigla na região Norte, que concentra a maior parte dos registros, os indígenas representam cerca de 18% de todas as candidaturas do partido, ainda que em números absolutos essa participação seja muito menor. Enquanto isso, no MDB, esse índice é de 2,6%, e no PT, de 4%. Ou seja, a Rede é menor, mas abre mais espaço em suas fileiras para os indígenas. Assim, em termos proporcionais, considerando-se os dez partidos com o maior número de registros indígenas, a agremiação tem 2,5% de seus quadros com esse perfil, o que poderia alçá-la ao título de partido mais indígena do país.
Já o PSOL, que figura entre os cinco principais partidos para candidaturas indígenas na região Sudeste, oferece abrigo amplamente maior quando comparado às outras quatro siglas. Ainda assim, indígenas representam apenas 1,2% dos nomes do PSOL na região, contra 0,5% do PT e 0,13% do Republicanos.
A estratégia de “aldear a política”
É notável que as candidaturas indígenas vêm crescendo no país e isto se deve, em grande parte, à estratégia deliberada do movimento indígena de “aldear a política”. Pelo menos desde 2017, com o manifesto “Por um Parlamento cada vez mais Indígena”, a Apib vem investindo em ampliar a representação indígena nas esferas de governo, com uma nítida motivação no acirramento dos ataques direcionados a eles a partir do governo de Michel Temer.
No ano seguinte ao manifesto, foi possível observar dois avanços importantes: a eleição de Joenia Wapichana (Rede-RR), segunda deputada federal e primeira mulher indígena a assumir o posto na história do país; e a candidatura de Sônia Guajajara (PSOL-SP) a vice na chapa de Guilherme Boulos à Presidência, fato também inédito no Brasil.
Com o chamado a demarcar as urnas, a Apib lançou a primeira Campanha Indígena em 2020, oferecendo apoio para o registro das candidaturas, bem como assessoria jurídica e de comunicação para quem solicitasse e tivesse uma luta reconhecida em favor dos direitos indígenas, e orientação para se filiar a partidos do campo progressista. Neste ano, a Apib lançou uma nova Campanha Indígena, estabelecendo uma agenda a ser seguida pelos candidatos que apoiar.
Como tratado acima, as candidaturas indígenas, sobretudo nos pleitos municipais, estão sujeitas à correlação de forças políticas desfavorável à luta por seus direitos. Isto leva muitos candidatos a ter que escolher entre o pragmatismo político e o alinhamento com o campo progressista, gerando uma espécie de dissonância ideológica envolvendo a tríade partido, representante e representados.
Este é um desafio a ser observado no processo de aldeamento da política, pois, apesar de o pragmatismo funcionar para aumentar a representação nos mandatos municipais, a agenda do partido pode se impor sobre a do movimento – assumindo aqui que os candidatos estão engajados na luta construída pelo movimento indígena. Construídas as candidaturas e eleitos os representantes, o movimento indígena se volta agora para acompanhar o exercício desses mandatos e monitorar a execução da agenda com a qual se comprometeram, o que é um desafio enorme diante da expansão dessas candidaturas.
(Imagem: Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas - Valter Campanato/Agência Brasil)
*Marina A. R. M. Vieira é assessora indigenista e doutoranda em Ciência Política na Unicamp e Andressa Zanin Rovani é jornalista, doutoranda em Ciência Política na Unicamp e pesquisadora do Observatório das Eleições 2024. Este artigo foi publicado originalmente no Nexo.
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